sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Ainda a propósito dos Tempos de Trabalho...

Na sequência de um dos comentários aqui colocados relativamente ao tema dos tempos de trabalho (ver mensagem anterior e comentário de Silva Alves) proponho aqui mais algumas reflexões avulsas...
Uma das coisas mais paradoxais (será mesmo?...) das análises económicas convencionais – as da escola neoclássica - é, por um lado, a sua adopção do modelo da mecânica newtoniana para explicar a dinâmica dos fenómenos mercantis. Já foi mesmo escrito, também por outros autores, que a análise neoclássica é mesmo isso: uma mecânica dos fenémnos mercantis.

Mas, por outro lado, os economistas convencionais confundem com toda a displicência conceitos tão fundamentais (e tão distintos) como «preço» e «valor». Um pouco como se um físico confundisse com a mesma displicência conceitos como «massa» e «peso». Ou seja, os mesmo académicos que reclamam para a sua disciplina o rigor analítico da Física, deixam de lado esse rigor quando se trata de «separar os diversos níveis da realidade a estudar». Por outras palavras, propõem-se estudar fenómenos ao «nível dos células, tecidos e organismo», sem sequer pensar nos fenómenos subjacentes e ao nível das moléculas e dos átomos.

Para o caso aqui em questão - a relação entre, por um lado, a «abordagem física» (os tempos de trabalho e as quantidades de bens/serviços produzidos) e, por outro lado, a «abordagem financeira» (os preços a que se transaccionam os referidos bens/serviços entretanto produzidos e quem os compra e vende...) - para o caso aqui em questão, dizia, é importante considerar separadamente os níveis de análise que sejam adequados ou aplicáveis.

Ao longo dos últimos anos tenho tentado defender (e explicar) a tese de que, para uma melhor compreensão dos fenómenos mercantis na sua globalidade, os economistas deveriam também adoptar a separação (e complementaridade) de níveis de análise dos cientistas físicos (e químicos... e biólogos...). Uma coisa é o estudo das particulas subatómicas e respectivas interacções, outra coisa – outros níveis ou camadas mais acima – é o estudo das moléculas, células e tecidos... Mesmo considerando que estes niveis ou "camadas" não se ignoram entre si na medida em que os níveis mais baixos estão sempre a condicionar os níveis mais acima. Mas não se confundem.

Nesse contexto – e num primeiro momento analítico – os economistas deveriam também estudar/considerar as condições físicas de produção de bens e serviços («energia», «espaço», «tempo»....). Para já uma tal tarefa parece estar institucionalmente a cargo de «engenheiros de produção» e «sociólogos do trabalho». Aliás a maioria da literatura especializada em «análise de valor» (a produção de valor!...) é quase toda de autoria de «engenheiros de produção» e «sociólogos do trabalho». Julgo que são muito poucos os economistas que se aventuram por esses campos de estudo.

Penso ainda que, uma vez «armados com esse conhecimento» (dos «niveis fundamentais» da realidade económica), os economistas que se pretendam cientistas sociais a sério, passariam então a um estudo mais eficaz dos processos sociais de apropriação e distribuição da riqueza produzida. Nesse aspecto os autores da «Economia Política» clássica, do século XIX, estavam mais adiantados do que os seu sucessores do século XX. Em suma, houve aqui um gravíssimo retrocesso histórico, cujo preço andamos quase todos a pagar.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Crise de Sobreprodução e Tempo de Trabalho

A propósito de um apontamento anterior sobre o tema da crise de sobreprodução, um leitor deixou aqui alguns comentários muito pertinentes e que justificam uma discussão mais detalhada. Para não estar a reinventar o que já tive ocasião de escrever, transcrevo para aqui alguns parágrafos do livro «ANATOMIA DA CRISE - Crónica de um Desastre Anunciado» (Lisboa, 2009).

«Considerando que esta crise (como tantas outras antes desta) é uma crise de sobreprodução, então resultará daí uma primeira medida estrutural (no âmbito da economia) e estruturante (no âmbito da sociedade).
Desde logo, em primeiro lugar, penso na redução sistemática e progressiva dos horários de trabalho. Reclamação particularmente relevante se considerada no âmbito da totalidade dos países da União Europeia. Vem na linha da proposta aprovada em França pelo governo de Lionel Jospin, entretanto combatida pelos governos de direita que lhe sucederam. Vem também na linha da ênfase que hoje é dada, por diversos quadrantes políticos, à necessidade de “partilhar por todos o trabalho de facto disponível”.
Parece-me, no mínimo, estranho que enquanto se vai aceitando como natural que em algumas fábricas ou sectores de actividade se fechem portas ou se suspendam actividades, durante determinados períodos (algumas semanas, por exemplo), de modo a ajustar a produção à procura efectiva, não se pense ao mesmo tempo em, pura e simplesmente, consagrar e generalizar essa prática, reduzindo os horários de trabalho para toda a gente.
Em termos de lógica funcional do sistema é exactamente a mesma coisa. Será tudo apenas uma questão de discutir e ajustar os detalhes. Se menos 3 horas por semana para toda a gente, neste ou naquele sector, se um dia inteiro por semana, se isto ou aquilo... Não há aqui soluções “chave na mão”. Será sempre necessário analisar, caso a caso, e ninguém melhor para o fazer do que as empresas e os trabalhadores.
Ao Estado cabe apenas determinar o princípio, básico e fundamental, de uma redução geral do horário de trabalho, mas não apenas como “uma saída para a crise”. A lógica do sistema há-de impor, mais década menos década, que cada vez seja menos necessário “trabalhar” tanto como até agora, no sentido em que hoje se entende esta palavra e que cada vez seja mais necessário “passar a intervir” na vida social.
Lembro a esse respeito a longa e dura luta que houve que travar, nos idos de 1844, para que no Reino Unido se generalizasse a redução dos horários de trabalho, de 12 para 10 horas por dia. Até fins do século XIX, princípios do século XX, conseguiu-se generalizar a prática das 48 horas por semana. Depois, em meados do século XX passou-se para o padrão de 40 horas por semana.
De então para cá, apesar dos enormes ganhos de produtividade social, a situação estagnou. Ou seja, em sessenta anos passou-se de 72 horas para 48 horas semanais. Mas, em cem anos, e apesar (repete-se), dos enormes ganhos de produtividade social agregada, não se conseguiu mais do que passar de 48 horas para 40 horas semanais1.
As empresas sempre, mas sempre, se opuseram a quaisquer reduções de horários de trabalho, invocando sempre as mais urgentes razões e acenando para as dramáticas consequências sociais e económicas no caso de o Estado impor reduções aos horários de trabalho.
Mesmo reconhecendo o aumento generalizado das férias anuais, a consulta de quaisquer estatísticas laborais, mostrará à evidência, que há ainda um longo caminho a percorrer para ajustar os tempos de trabalho às necessidades efectivas da vida social e económica.
Se entretanto considerarmos os tempos de acesso aos locais de trabalho, por parte das populações urbanas, vemos facilmente o impacto negativo que esta situação continua a ter (e a agravar-se) sobre a vida familiar e a vida social em geral. Neste contexto, a luta por uma redução progressiva dos horários de trabalho deve ser prosseguida até que seja alcançada a taxa “natural” de desemprego (cerca de 2 a 3%) e que corresponde aos desempregados ocasionais e em procura (de curta duração) de primeiro ou segundo emprego.
Esta redução progressiva dos horários de trabalho poderá mesmo ser efectuada com uma redução proporcional do salário nominal. Sublinha-se aqui o carácter de salário nominal!... Por um lado, ao trabalhador o que interessa é o salário liquido que efectivamente recebe, no seu bolso ou conta bancária, no fim da cada mês. Ou seja, bastará que o Estado faça os necessários e adequados ajustes nas tabelas e taxas de IRS, para que os trabalhadores ganhando nominalmente menos, continuem a ganhar efectivamente o mesmo, em termos absolutos, ainda que algo mais, em termos relativos.
Por outro lado, em sistema capitalista e em regime de “Estado Social”, não é razoável esperar que sejam as empresas, uma a uma e a título individual, a suportar os encargos da solidariedade social. Esse encargo cabe por inteiro ao Estado de que todos somos cidadãos.
Em todo o caso é importante sublinhar que com a adopção de medidas deste tipo, todos podem sair a ganhar: os trabalhadores, as empresas e o Estado. Os trabalhadores porque passam a dispor de mais tempo para a família ou para seu aproveitamento pessoal. Desde o lazer à intervenção cívica. As empresas porque passam a dispor de mais variadas opções, em termos de qualificações, trabalhos por turnos e ainda de pessoas com mais variadas e diferentes motivações e qualificações. O Estado, porque tendo menos encargos com subsídios de desemprego, poderá mais facilmente suportar a não receita em sede de IRS, podendo mesmo, eventualmente – é apenas uma mera questão de “engenharia fiscal e de contabilidade social” – adoptar esquemas de incentivos fiscais dirigidos à actividade empresarial. Finalmente, o Estado ganhará sobretudo em termos de maior coesão social, a qual é sempre propícia ao investimento.
Referi mais atrás que com uma redução gradual, mas sistemática e sustentada, dos horários de trabalho, os trabalhadores passariam a ter mais tempo para a intervenção cívica. Tal facto parece-me crucial para a consciencialização da cidadania e para a discussão colectiva das decisões políticas mais importantes. Muito em particular no que diz respeito à participação activa nos diversos meios de discussão e decisão, desde as autarquias até à participação no processamento da Justiça.
Mas aqui – na ocupação dos “tempos livres” que pudessem ser dedicados a uma intervenção cívica - haverá a considerar o peso cada vez maior das indústrias da alienação as quais têm tido um papel explicitamente assumido de “entreter e distrair o pessoal”. Como já diziam os dirigentes do Império Romano, “panem et circenses”...»
 
1 Resumindo a evolução ao longo do século XIX, temos que até 1832 não havia limite e a questão de ‘horário de trabalho’ nem sequer se punha. Em 1833 passou-se para o limite das 12 horas por dia ou 72 horas por semana. Em 1844 passou-se para o limite de 10 horas por dia ou 60 horas por semana, mas apenas em algumas actividades de maior desgaste físico. Em 1848 generalizou-se o limite das 10 horas por dia ou 60 horas por semana.
2 A razão é simples e faz todo o sentido: é necessário (tem toda a vantagem...) aproveitar ao máximo o capital fixo (as máquinas e as estruturas físicas...) para delas tirar o máximo rendimento. Além do mais o trabalho por turnos – por causa de eventuais paragens ou abrandamentos – parece resultar menos eficiente do que o trabalho continuado dos mesmos trabalhadores.